sábado, 5 de maio de 2018

Parar é antecipar a morte. Por isso, é pegar nas latas e grafitar paredes. To stop is to anticipate death. So it's picking up cans and graphing walls.

Isso aí viver para não morrer , viva la vida !

 
Num canto de Lisboa, um bando de idosos agita latas. Os turistas que passam vêm ver que barulheira é aquela e deparam-se com um aparato de vandalismo sénior. O génio não tem idade e por isso, qual Picasso adormecido, carregam no botão e despejam em Alcântara toda a abstração de uma nova arte: a urbana e a de ser jovem, mesmo depois de velho.
Parar é antecipar a morte. Por isso, é pegar nas latas e grafitar paredes
Até acalma. Devagar, ao passo que permite o músculo cansado, Maria Helena, 63 anos, agarra no bisturi e corta o papel. Na mesa atrás, em minucioso traço vermelho, Maria do Carmo, 74, desenha na folha branca uma tapeçaria. Também umas flores. Pela janela o sol, ao fundo a ponte e o Tejo.
Numa primavera tropical, Alcântara, na zona ocidental de Lisboa, enche-se de sol, mas também de nuvens. Na LX Factory, um velho parque industrial renascido, um grupo de idosos lisboetas aprende um novo ofício. No quarto piso daquilo que em 1846 começou por ser a Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, há aulas de graffiti. Idosos que aprendem a desenhar, também a cortar e preparar o ‘stencil’ para marcar nas paredes o que lhes vai na cabeça.
Pintar uma parede no meio da rua é uma expressão. Um grito silencioso, feito no escuro noturno, na irreverência ou na necessidade de marcar a pigmento o nome. Chamam-lhe ‘tag’ (assinatura) e é isso mesmo, uma etiqueta que anuncia: "Por este lugar passou fulano de tal”.
Estes mais velhos, que juntos mais de muitas centenas de anos passaram por esta Lisboa e por esta terra, decidem agora que nome hão de dizer ao mundo, numa parede de um parque industrial, o deles. “O nome também é a nossa pessoa”, escreve Vergílio Ferreira. E se o nome se eternizar no cimento, também se eterniza a pessoa?
Depois de pegar na lata, a experiência ganha naturalidade. O funcionamento de um banal aerossol não é desconhecido e, após breves lições do instrutor, o enorme painel branco começa a riscar-se de cor. Ajudados pelas fisioterapeutas e técnicas das associações, ou apoiados por outros companheiros da idade, chegam-se à parede, levantam-se das cadeiras de rodas e traçam a marca. “Por este lugar” — desenham com cuidado — “passou fulano de tal”.
As demências e desvios das mentes dalguns afastam-nos do mural. Ficam arredados, à sombra de chapéus de palha, a ver o crescer de traços, linhas esfumadas ou círculos carregados de tinta a escorrer que os outros mancham. “Bebam água”, grita uma técnica. O sol carrega forte; seca a tinta, mas também o corpo. As sombras realçam as rugas, as experiências de cada um. Vindos de onde vêm, de terras, saberes e ofícios distintos, encontram-se agora ali, num ‘vandalismo’ sénior (e autorizado).

Velhos são os trapos. Ou como desmontar ideias e preconceitos

Com uma madeixa cor-de-rosa a em cima  do cabelo, tatuagem no braço, esta senhora é o alvo perfeito para o jornalista em busca do insólito. “Ora, eis uma avó fora do normal”, pensará o comum repórter. Certo será que incapazes todos são de definir o que é uma avó dentro do normal, se todas as avós, misto de personalidades próprias e fabulações dos respectivos netos, sempre são únicas e distintas.
Quem é, então, esta mulher de cabelo platina e rosa? De bicicleta tatuada no pulso? É Isabel.
“Não sou diferente, não faço por ser diferente. Sou assim. Se acham que sou diferente, tudo bem.”

“Sou uma pessoa que gosta de estar ocupada. Não gosto de estar parada. Gosto de aprender coisas novas. As pessoas geralmente quando chegam a uma certa idade acomodam-se e eu não gosto de me acomodar”, atira.
“Custaram mais os pontos que me deram quando caí”, diz sobre a tatuagem de uma bicicleta, paixão desta lisboeta, que carrega no pulso. “Diz que é onde dói menos”, explica, enquanto ultima os detalhes de um molde para pintar uma réplica dessa mesma bicicleta.
Apesar de asmática, aos 65 anos é de bicicleta que vai para todo o lado. Quer dizer, todo o lado não: “quando uma pessoa sai à noite, custa muito ir beber copos e depois vir de bicicleta”, esclarece.
“Uma pessoa parar é a morte antecipada”. Daí que iniciativas como esta sejam importantes. O graffiti é uma estreia no currículo desta ex-educadora de infância que já passou pelo teatro, também pela música. Gosta da experiência, como gosta da arte urbana, desde que, lá está, arte. Há 'putos', conta, que fazem coisas que são um exagero. E por isso o ideal seria que a prática estivesse regulamentada.
Junta-se a um eventual grupo de avós que congemina forma de decorar as paredes perdidas da cidade. “Ainda falta aí uma colega nossa que acho que também achava graça. Era uma boa também para a dupla”, diz.
Anabela faz hoje 71 anos. É outra das voluntárias para o assalto ao círculo da arte urbana lisboeta. “Sempre achei bonito. Gosto. Desde que sejam com beleza. Isso de riscar paredes e portas…”, vai dizendo numa pausa entre os cortes no ‘stencil’. É uma técnica nova, embora já conhecesse outras.
 
 






Por Pedro Soares Botelho



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